Pesquisa nos EUA constatou dificuldade de crianças para dormir e uso indiscriminado de melatonina. Neurologista analisa o que pode estar por trás do problema na infância |
Por Fernanda Bassette, da Agência Einstein
Uma pesquisa sobre saúde infantil feita pelo Hospital C.S. Mott, nos Estados Unidos, constatou que um em cada quatro pais de crianças pequenas (de 1 a 6 anos de idade) afirma que seu filho não consegue dormir por estar preocupado ou ansioso. Mais de um terço respondeu que os pequenos não dormem a noite toda e, muitas vezes, acordam chateados ou chorando.
Essa é uma realidade por aqui também. “Relatos de ansiedade e dificuldades com o sono em crianças são um problema cada vez mais frequente no consultório”, afirma a neurologista Letícia Soster, do Grupo Médico Assistencial do Sono do Hospital Israelita Albert Einstein.
O resultado de uma noite maldormida é que, no dia seguinte, a criança normalmente acorda irritada e precisa de mais atenção. “Isso acontece com frequência. Muitos acham que é uma questão exclusiva do sono, mas não é”, observa a médica. Segundo Soster, em geral, a ansiedade na criança relacionada à dificuldade de dormir é uma questão comportamental, e não um transtorno generalizado de ansiedade.
A pesquisa nos EUA ouviu 781 pais de crianças pequenas. Os resultados mostram que a maioria (90%) relata ter uma rotina na hora de colocar os filhos para dormir. Isso inclui escovar os dentes, ler histórias, tomar banho, beber água, fazer um lanche, desligar aparelhos eletrônicos, rezar e conversar sobre o dia.
Ainda segundo os voluntários, entre os hábitos de dormir dos pequenos estão segurar um cobertor ou bicho de pelúcia, chupar chupeta ou o dedo. Quase metade diz que mantém o quarto silencioso, mas alguns colocam música suave, um vídeo ou um programa de TV. Para um quarto dos pais, o momento de levar os filhos para a cama é considerado difícil.
A importância da rotina de sono
Para Soster, estabelecer uma rotina de sono é essencial e a recomendação é que a família escolha três passos anteriores à hora de dormir. A ideia é que eles se tornem um hábito e a criança compreenda que o final dessa sequência vai levá-la ao sono. Por exemplo: depois de jantar, a criança pode tomar banho, deitar-se para ouvir uma história e, em seguida, dormir.
“A rotina não é um item isolado na promoção do sono, ela faz parte do que chamamos de higiene do sono. É a forma de falar para a criança e para o corpo dela que depois daquela sequência de três passos ela vai dormir. Essa rotina vai fazer com que exista uma habituação, uma associação, uma causa e consequência, permitindo que a criança entenda e comece a se preparar naturalmente para aquele momento”, explica a médica do Einstein.
O problema é que, conforme os autores do estudo ponderam, no período noturno, os próprios pais também estão mais cansados. E isso, muitas vezes, os impede de dar a devida atenção não só ao momento de colocar os pequenos na cama, mas de garantir o tempo de qualidade necessário no dia a dia. As crianças percebem isso. “Não existe a tranquilidade necessária para iniciar a rotina do sono, e a criança está querendo a atenção genuína do pai e da mãe. Precisamos entender o contexto de vida tanto desses pais quanto dessas crianças”, analisa Leticia Soster.
Uso indiscriminado de melatonina
A nova pesquisa mostra outro dado preocupante: 19% dos pais participantes dizem que dão melatonina aos seus filhos com frequência para ajudar no sono, e somente 15% conversaram com um médico sobre isso.
Esse “hormônio do sono”, como é conhecido, é produzido naturalmente no nosso organismo. Produzido pela glândula pineal, localizada na base do cérebro, ele é responsável por conduzir o ciclo circadiano, que regula os períodos de vigília (em que estamos acordados) e os de sono.
Nos últimos anos, a suplementação de melatonina se tornou comum em diversos países, incluindo o Brasil. Mas, segundo Soster, a deficiência desse hormônio na infância não é algo comum, que justifique o uso abusivo e indiscriminado que se tem visto. Na visão da neurologista, os pais dão esse suplemento por conta própria porque querem que o filho durma melhor, sem que ele tenha um problema, de fato.
Entre as condições relacionadas à menor produção de melatonina nessa idade estão tumores no cérebro ou síndromes genéticas que invertem o pico de liberação da substância. “Essas situações são raras e se associam a alterações genéticas que de fato causam deficiência de melatonina”, explica a neurologista. “Mas o que vemos hoje em dia é que as pessoas a usam a qualquer momento, porque querem que o sono do filho seja ‘saudável’. A melatonina não vai resolver uma questão comportamental.”
A importância do sono
O tempo de sono necessário para uma criança é muito maior do para um adulto – até os 6 anos de idade, na chamada primeira infância, elas passam mais da metade da vida dormindo. Esse tempo é essencial para o crescimento e o desenvolvimento delas, pois muitos processos psíquicos se consolidam no período noturno e se manifestam durante o dia.
“Uma criança com sono ou com noites maldormidas não fica sonolenta como o adulto, ela fica irritada. Se não dormir bem, ela vai crescer uma pessoa irritada e começar a se enxergar assim, pois a criança está no período de reconhecimento da própria personalidade, da construção de quem ela é”, pontua Letícia Soster.
Outro fato é que, na infância, dois terços do GH (hormônio do crescimento) são liberados na primeira metade do sono e é esse hormônio que faz a criança ganhar estatura. É também durante a noite que acontecem as modulações das atividades cardíacas, o controle da saúde metabólica, a consolidação da memória e do que se aprendeu durante dia, além do desenvolvimento neurológico, entre outras coisas.
“A criança precisa do sono para se desenvolver. E não são apenas os aspectos físicos e orgânicos, mas psicológicos, sociais e ambientais. Tudo faz parte de um ciclo de interações que não tem apenas uma causa e um efeito”, destaca a neurologista.
Além de identificar o que está por trás da dificuldade dos pequenos de dormir, é importante se atentar à rotina como um todo da criança. “Precisamos desligar as telas muito antes [da hora de dormir], ter um final de dia mais relaxante, acordar de manhã e nos expor ao sol. E uma série de coisas que devem ser feitas nas 24 horas do dia para termos uma boa noite de sono”, orienta Soster.
Fonte: Agência Einstein